Os triângulos rosas e parágrafos 175 que insistem em perdurar | Márcio El-Jaick

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Por Márcio El-Jaick*

Você só queria levar sua vida de jobs mal pagos e prazos apertados, frentes frias, reuniões de condomínio, filmes oscarizados, Drag Race, séries das quais você não passa do episódio piloto, às vezes sim, supinos inclinados, omeletes de clara, com sorte declarações de amor e um show do Emicida, com sorte uma festa com lista amiga e playlist que parece que você fez, sem drinques batizados, com sorte o prêmio do júri da Un Certain Regard do ano passado.

Você só queria sobreviver à recessão do seu país de dimensões continentais tocando sua vidinha, no diminutivo, comparando preços, elaborando senhas fortes, aproveitando queimas de estoque, fazendo posts motivacionais, sem pedir muito, às vezes tomando umas, batendo com canastra limpa, regando as plantas que são de regar, buscando a felicidade onde dá com sua autoestima flutuante, suas crises de consciência e delírios persecutórios, a inflação engolindo seu VGBL, mas você fazendo truques que passam por milagres, milagres que passam por truques, com sorte comprando parcelado uma viagem para uma praia bonita, sem pousos forçados nem malas extraviadas, com sorte sambas de roda, trios elétricos, uma gira.

Você só queria sobreviver a uma epidemia que é uma série longuíssima, pensa Grey´s Anatomy, da qual você não queria ter visto o episódio piloto, enfrentou o começo com ajuda, Lexapro, Teresa Cristina, uma cachorra nova depois de ter perdido sua cachorra velhinha, você usou máscara embora o governo federal dissesse que você não devia, você se vacinou embora o governo federal dissesse que você devia tomar cloroquina, você só queria ficar no seu canto com seu i-Phone ultrapassado distribuindo uns likes, lendo apavorado mas de longe sobre armas biológicas, vazamentos de óleo e campos de refugiados, achando que está fazendo sua parte com sua ecobag.

Você não pode. Ou não deveria.

Você não é criminoso na Alemanha, mas era. Até junho de 1968. Faz pouco mais de cinquenta anos. Existia no código penal alemão o Parágrafo 175, instaurado em 1871, cujos resquícios foram perpetrados até 1994. Não faz trinta anos. No período nazista ele se radicalizou, te caçavam e te jogavam num campo de concentração, onde você marchava identificado por um triângulo rosa invertido.

Ah, não, agora você só queria ficar sentado, em casa, na sua, com seus torrents e seus recaptadores de serotonina, sem precisar relembrar Stonewall nem discutir homofobia, políticas de gênero, racismo, sem precisar saber de Mark Bray, Lilia Schwarcz e Djamila, você estaria de boa só com literatura boa, Chimamanda, Michel Laub, você que sempre teve poucos interesses — e a literatura foi um deles, o cinema outro, a música —, mas a literatura discute políticas de gênero e racismo, o prêmio do júri da Un Certain Regard do ano passado é uma produção alemã que conta a história de um homossexual que sobreviveu à perseguição nazista mas depois segue sendo encarcerado, e o Emicida é um estandarte de resistir.

Você deveria se levantar

Você deveria se levantar mesmo que o alvo não fosse você. Se queimam o Talmude, se destroem atabaques. Porque se existe um alvo você deveria se interpor entre o alvo e a bala, foi o que seu pai te ensinou. Mas o alvo também tem sido você. Hoje na Alemanha você não é criminoso, mas em setenta países você é, inclusive no Líbano dos seus antepassados, do avô do seu pai.

O Brasil é um país de dimensões continentais que tem dentro dele um Líbano maior do que o Líbano e tem um presidente democraticamente eleito que ameaça cotidianamente a democracia, que não conhece Chimamanda mas se conhecesse a pesaria em arrobas, ela que pesamos em quilates, um presidente que autoriza o extermínio indígena e te despreza autorizando o seu, cuja equipe flerta como uma donzela tonta com o nazismo alemão e sua parafernália, citações de Goebbels, suásticas homeopáticas, sieg heil, Kekistan, por isso você precisa pegar seu triângulo rosa e se levantar com ele no peito em junho mas também em julho e agosto, não porque nossa SS te obriga, mas porque você deveria.

“O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo” é um dado estatístico, como “O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo” é um dado estatístico, o segundo você entende, o primeiro também. E o que explica é o ódio. No Brasil todo dia você aprende o nome de uma mulher trans periférica morta a tiros, facadas, pedradas. Você não mora em Brunei, mas dentro do Brasil tem um Brunei que é maior do que Brunei. A violência você chama de coió, nossa Gestapo chama de mimimi.

Em seu O Manual Antifa, Mark Bray faz uma ressalva ao conceito de “liberdade” segundo o qual todos teriam o direito de se manifestar, a ressalva de que no caso do discurso do ódio, de grupos de pessoas que querem anular outros grupos de pessoas, essa liberdade está anulada. E, assim como fascistas vão à rua para atacar pessoas que eles odeiam, há grupos antifas que vão à rua para atacar fascistas. Você deveria ler Mark Bray e se levantar.

*Márcio El-Jaick é jornalista (PUC-Rio), escritor e tradutor, autor dos romances Horas Vagas e Para a sua jukebox, entre outros, pelas Edições GLS. Em 2020, lançou o livro “Horas Vagas”, que tem como tema relacionamentos instantâneos e noites solitárias.

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